Márcia N. Guedes
O número de desempregados nos 16 países que compõe a zona do euro subiu para 15,09 milhões (Folha On Line, 01/09/2009 - 07h57). Como entender essa notícia quando levas de brasileiros se deslocam, com emprego e moradia garantidos, para a Alemanha?
De Mainz a Colônia, barcos repletos de turistas singram o Reno. Escavado entre colinas, adornadas de castelos medievais, o rio muda repentinamente seu curso se estreitando perigosamente na garganta de Bingen. Mas, Loreley, a loura que encantava os navegantes e afundava seus barcos, descansa petrificada para sossego da turistada.
Berço do romantismo, a Renânia prospera desde que os romanos ali plantaram as primeiras videiras, hoje, cultivadas com carriolas sobre trilhos e rapel. No ângulo da bacia, o Mosel despeja suas águas no Reno e, para assegurar aquela estratégica esquina (Deutsches Eck), ergueu-se o Festung, em torno do qual cresceu a cidade de Koblenz.
É nesse cenário de contos de fadas dessas duas artérias fluviais, Mosel e Reno, que jovens do Brasil, recrutados no estado de Santa Catarina, vão trabalhar em restaurantes, cafés e sorveterias italiana, que crescem de um verão para outro, e onde os "bárbaros" germânicos, aficionados pelo sorvete e toda a culinária italiana, espantam a nostalgia.
Nada mais lógico do que incrementar o turismo numa região exuberante e que padeceu um cataclismo com a queda do muro de Berlim (1989). Ponto estratégico militar e econômico do país há dezenas de séculos, Koblenz vivia da administração pública e da presença de 10 mil soldados. Com a crise e o desemprego, o turismo seria a saída natural para o lugar e seus habitantes.
Acontece que o tsunami, que varreu a Ásia e alterou o eixo da terra, em 2005, foi precedido de um outro, 20 anos antes, que derrubou as conquistas sociais e dividiu a condição humana entre os "de dentro" e os "de fora."* Assim, o incremento do turismo em certas regiões da terra não implica consequentemente em trabalho e emprego para os habitantes do lugar, mas na reinvenção de uma outra modalidade de "sujeição"**.
"Tatiana é uma jovem catarinense, descendente de italianos, que trabalha numa sorveteria de um shopping em Koblenz. Ela e o marido dividem com mais três casais a moradia fornecida pelo empregador: uma quitinete com três divisórias, banheiro e cozinha comuns. O contrato escrito é para trabalhar 8 horas diárias e 36 semanais, mas na realidade trabalha 12 horas diárias e 72 horas semanais. Afirma que esta é a única forma de fazer um pé-de-meia e construir uma casa no Brasil. Afinal, com sua profissão, trabalhando para uma empresa do ramo de alimentos em Florianópolis, não alcançava 1 mil reais de salário mensal.
Com os colegas de trabalho, Tatiana decorou algumas frases feitas, indispensáveis para atender os clientes alemães. Trabalha de pé e corre de um lado para outro servindo mesas; o salário que recebe é o mesmo que um alemão receberia para trabalhar 8 horas diárias e 36 semanais. Com ironia compara os alemães com os brasileiros: "será que ninguém vê que começa sua jornada as 8 horas e encerra às 20 horas?" "As autoridades não sabem o que está acontecendo?". Mas logo se arrepende e revela um sentimento de culpa: "se o patrão não cumpre a lei, é 'cúmplice' dele porque aceita essa situação".
Da poética renânia Tatiana nada sabe. Não tem tempo para cursar uma escola e aprender a língua (instrumento vital para a inserção e sobrevivência em qualquer cultura). Mas se consola lembrando que outras conterrâneas, que trabalham nos estabelecimentos localizados na rua, perfazem jornadas de até 16 horas diárias. A ordem é servir enquanto tiver cliente.
Na Pior em Paris e Londres, livro autobiográfico que transformou Eric Arthur Blair em George Orwell , ele descreve a condição a que estavam submetidos empregados de hotéis e restaurantes na cidade luz na década de 1920:
"Os pongleurs também têm um ponto de vista diferente. O trabalho deles não oferece nenhuma perspectiva, é intensamente exaustivo e, ao mesmo tempo, não tem um traço de habilidade ou interesse; é o tipo de trabalho que seria feito por mulheres se elas fossem suficientemente fortes. Tudo o que se exige deles é que estejam em constante correria e que agüentem longas horas de trabalho e uma atmosfera abafada. Não têm como escapar dessa vida, pois não conseguem economizar um tostão do salário, e as sessenta a cem horas de trabalho semanais não lhes deixam tempo para aprender outra coisa. O melhor que podem esperar é achar um emprego um pouco mais leve, como guarda-noturno ou encarregado de banheiros" .
Desenraizada e vítima de um sistema contraditório, Tatiana é um ser invisível ("de fora") que amarga o sorvete da Esquina da Alemanha, mais uma prova de que a mundialização da economia nos coloca mais perto da ordem de Auschwitz do que da Germânia de Bismarck, que, temendo a revolução socialista, pediu ao Reichstag que tomasse a peito a sorte dos operários.
Curiosamente, foi nessa região, na cidadezinha de Trier, à beira do Mosel, que nasceu Karl Marx, pensador que com sua utopia alterou o curso da história do século XX. Observando como os humanos acorrem em hordas para apreciar os recantos mais românticos da terra, eu, e mais um punhado de colegas, admiradores dos ideais plantados na Escola de Frankfurt, preferimos crer que esse é um sinal de que a poética vai prevalecer e o horror deste mundo não terá a última palavra.
* BAUMAN, Zigmunt. Una Nuova Condizione Umana. Vita e Pensiero. Milão, 2003. Pág. 25.
** O processo é semelhante ao recrutamento de nordestinos para os canaviais do sul do Brasil.
Terra Magazine
O número de desempregados nos 16 países que compõe a zona do euro subiu para 15,09 milhões (Folha On Line, 01/09/2009 - 07h57). Como entender essa notícia quando levas de brasileiros se deslocam, com emprego e moradia garantidos, para a Alemanha?
De Mainz a Colônia, barcos repletos de turistas singram o Reno. Escavado entre colinas, adornadas de castelos medievais, o rio muda repentinamente seu curso se estreitando perigosamente na garganta de Bingen. Mas, Loreley, a loura que encantava os navegantes e afundava seus barcos, descansa petrificada para sossego da turistada.
Berço do romantismo, a Renânia prospera desde que os romanos ali plantaram as primeiras videiras, hoje, cultivadas com carriolas sobre trilhos e rapel. No ângulo da bacia, o Mosel despeja suas águas no Reno e, para assegurar aquela estratégica esquina (Deutsches Eck), ergueu-se o Festung, em torno do qual cresceu a cidade de Koblenz.
É nesse cenário de contos de fadas dessas duas artérias fluviais, Mosel e Reno, que jovens do Brasil, recrutados no estado de Santa Catarina, vão trabalhar em restaurantes, cafés e sorveterias italiana, que crescem de um verão para outro, e onde os "bárbaros" germânicos, aficionados pelo sorvete e toda a culinária italiana, espantam a nostalgia.
Nada mais lógico do que incrementar o turismo numa região exuberante e que padeceu um cataclismo com a queda do muro de Berlim (1989). Ponto estratégico militar e econômico do país há dezenas de séculos, Koblenz vivia da administração pública e da presença de 10 mil soldados. Com a crise e o desemprego, o turismo seria a saída natural para o lugar e seus habitantes.
Acontece que o tsunami, que varreu a Ásia e alterou o eixo da terra, em 2005, foi precedido de um outro, 20 anos antes, que derrubou as conquistas sociais e dividiu a condição humana entre os "de dentro" e os "de fora."* Assim, o incremento do turismo em certas regiões da terra não implica consequentemente em trabalho e emprego para os habitantes do lugar, mas na reinvenção de uma outra modalidade de "sujeição"**.
"Tatiana é uma jovem catarinense, descendente de italianos, que trabalha numa sorveteria de um shopping em Koblenz. Ela e o marido dividem com mais três casais a moradia fornecida pelo empregador: uma quitinete com três divisórias, banheiro e cozinha comuns. O contrato escrito é para trabalhar 8 horas diárias e 36 semanais, mas na realidade trabalha 12 horas diárias e 72 horas semanais. Afirma que esta é a única forma de fazer um pé-de-meia e construir uma casa no Brasil. Afinal, com sua profissão, trabalhando para uma empresa do ramo de alimentos em Florianópolis, não alcançava 1 mil reais de salário mensal.
Com os colegas de trabalho, Tatiana decorou algumas frases feitas, indispensáveis para atender os clientes alemães. Trabalha de pé e corre de um lado para outro servindo mesas; o salário que recebe é o mesmo que um alemão receberia para trabalhar 8 horas diárias e 36 semanais. Com ironia compara os alemães com os brasileiros: "será que ninguém vê que começa sua jornada as 8 horas e encerra às 20 horas?" "As autoridades não sabem o que está acontecendo?". Mas logo se arrepende e revela um sentimento de culpa: "se o patrão não cumpre a lei, é 'cúmplice' dele porque aceita essa situação".
Da poética renânia Tatiana nada sabe. Não tem tempo para cursar uma escola e aprender a língua (instrumento vital para a inserção e sobrevivência em qualquer cultura). Mas se consola lembrando que outras conterrâneas, que trabalham nos estabelecimentos localizados na rua, perfazem jornadas de até 16 horas diárias. A ordem é servir enquanto tiver cliente.
Na Pior em Paris e Londres, livro autobiográfico que transformou Eric Arthur Blair em George Orwell , ele descreve a condição a que estavam submetidos empregados de hotéis e restaurantes na cidade luz na década de 1920:
"Os pongleurs também têm um ponto de vista diferente. O trabalho deles não oferece nenhuma perspectiva, é intensamente exaustivo e, ao mesmo tempo, não tem um traço de habilidade ou interesse; é o tipo de trabalho que seria feito por mulheres se elas fossem suficientemente fortes. Tudo o que se exige deles é que estejam em constante correria e que agüentem longas horas de trabalho e uma atmosfera abafada. Não têm como escapar dessa vida, pois não conseguem economizar um tostão do salário, e as sessenta a cem horas de trabalho semanais não lhes deixam tempo para aprender outra coisa. O melhor que podem esperar é achar um emprego um pouco mais leve, como guarda-noturno ou encarregado de banheiros" .
Desenraizada e vítima de um sistema contraditório, Tatiana é um ser invisível ("de fora") que amarga o sorvete da Esquina da Alemanha, mais uma prova de que a mundialização da economia nos coloca mais perto da ordem de Auschwitz do que da Germânia de Bismarck, que, temendo a revolução socialista, pediu ao Reichstag que tomasse a peito a sorte dos operários.
Curiosamente, foi nessa região, na cidadezinha de Trier, à beira do Mosel, que nasceu Karl Marx, pensador que com sua utopia alterou o curso da história do século XX. Observando como os humanos acorrem em hordas para apreciar os recantos mais românticos da terra, eu, e mais um punhado de colegas, admiradores dos ideais plantados na Escola de Frankfurt, preferimos crer que esse é um sinal de que a poética vai prevalecer e o horror deste mundo não terá a última palavra.
* BAUMAN, Zigmunt. Una Nuova Condizione Umana. Vita e Pensiero. Milão, 2003. Pág. 25.
** O processo é semelhante ao recrutamento de nordestinos para os canaviais do sul do Brasil.
Terra Magazine
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