07/07/2007

O que a reforma da Língua Portuguesa vai mudar em nossa vida

Por Ediane Tiago

Pasquale Cipro Neto deve se preparar para dobrar sua carga de trabalho a partir de 2009. Referência absoluta para os que desejam reduzir a agressão à "última flor do Lácio", nosso mestre da língua terá de resolver as muitas dúvidas que surgirão com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, previsto para entrar em vigor nesse ano.

Com sua adoção, as diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal serão resolvidas em 98%. A unificação da ortografia da língua portuguesa - único idioma do Ocidente a ter duas grafias oficiais: a do Brasil e a de Portugal - acarretará alterações na forma de escrita em 1,6% do vocabulário usado em Portugal e de 0,5% no Brasil. Além deles, seis países africanos (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Lester) compõem a comunidade de mais de 200 milhões de pessoas que têm o português como língua oficial.

A unificação da ortografia é importante para o futuro do idioma no mundo, pois o português é a terceira língua ocidental mais falada, atrás apenas do inglês e do espanhol, avalia o Ministério da Educação do Brasil. Uma publicação portuguesa tem de passar por uma revisão para ser lançada no Brasil, enquanto um livro de um autor latino-americano pode ser publicado ao mesmo tempo, com a mesma edição, na Espanha e na América de língua espanhola.

"Mesmo pequenas, as mudanças representam uma enorme diferença na circulação de livros, materiais educativos, intercâmbio de alunos e acordos de cooperação. Trata-se da criação de um mercado global para a língua portuguesa", afirma Carlos Alberto Xavier, assessor especial do ministro da Educação, Fernando Haddad.

As mudanças

Com a reforma ortográfica, o alfabeto brasileiro, que possui 23 letras, ganhará mais três: k, y e w, o que não deve implicar muita alteração. Mas o trema será totalmente eliminado das palavras portuguesas ou aportuguesadas, sendo usado só em palavras derivadas de nomes próprios estrangeiros, como mülleriano, de Müller.

A regra para uso de hífen também será simplificada e a acentuação gráfica, alterada: não serão assinalados com acento gráfico os ditongos ei e oi de palavras paroxítonas, como assembléia, idéia e jibóia.

Pasquale certamente terá menos trabalho ao explicar que não se usará mais o acento circunflexo nas terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos crer, dar, ler, ver e seus derivados: a grafia correta será creem, deem, leem e veem. O acento circunflexo usado em palavras terminadas em hiato, como enjôo, também cairá. O acento deixará ainda de ser usado para diferenciar pára (verbo) de para (preposição).

Por outro lado, as novas regras ortográficas obrigarão os portugueses a grafarem algumas palavras como no Brasil. O verbete acção passará a ser ação. Os portugueses também terão de retirar o h inicial de algumas palavras, como em herva e húmido, que passarão a ser grafadas como no Brasil: erva e úmido.

"A unificação propicia a criação de um idioma de trabalho, que é fundamental para os acordos diplomáticos", comenta Mário Mendão, técnico da assessoria jurídica da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Entre as vantagens, ele também destaca o fato de a reforma facilitar o intercâmbio de estudantes entre os países de língua portuguesa. "Do jeito que está, temos dois idiomas."

Promoção da língua

Para as palavras que admitem diferentes pronúncias, manteve-se a possibilidade de duas grafias. Os brasileiros escreverão fato, e os portugueses, facto. As duas formas de grafar esse substantivo serão consideradas corretas nos países signatários do acordo. "A unificação da ortografia elimina a necessidade de traduzir obras para o padrão português ou brasileiro. Facilita também a troca de conteúdo entre os países", exemplifica Mendão.

O fato de existirem duas ortografias, argumenta o Itamaraty, dificulta campanhas de divulgação do idioma e a sua adoção em fóruns internacionais. Com isso, a entrada em vigor do acordo será essencial para a definição de uma política de promoção e difusão da língua portuguesa.

Para Antônio Houaiss (1915-1999), negociador brasileiro do acordo ortográfico e elaborador da Nova Ortografia da Língua Portuguesa (1991), a unificação da ortografia não implica uniformização. "Portugal, Brasil e os países africanos de língua portuguesa reconhecem que a inexistência de uma única ortografia oficial traz não apenas dificuldades de natureza lingüística, mas também de natureza política. Daí o esforço desses países em efetivar o novo acordo", escreveu.

No Brasil, o acordo ortográfico foi discutido no Congresso Nacional por mais de dez anos, aprovado em 2001 e logo em seguida sancionado pelo presidente da República. Em dezembro de 2006, o acordo foi sancionado pelo governo de São Tomé e Príncipe. Com isso, a CPLP poderá definir a data para início da vigência do acordo. O requisito estabelecido no protocolo de mudança já foi atendido.

Vantagens diplomáticas

Para os lingüistas e livreiros, entretanto, o acordo não traz contribuições à língua escrita no Brasil e criará problemas. Bruno Dallari, professor de lingüística da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), alerta que não há possibilidade de unificação da grafia - e a entrada em vigor das regras propostas deve apenas confundir estudantes e professores.

Ele explica que o próprio acordo prevê a manutenção de sinais diferentes para palavras iguais. Dessa forma, os brasileiros continuarão escrevendo Antônio, enquanto em Portugal se escreverá António. A manutenção de grafias diferentes também atinge palavras como úmido e húmido, que têm o mesmo sentido. "Agora será preciso explicar para os alunos que é possível escrever de dois jeitos."

Os alunos também sofrerão com as regras facultativas. Pelo acordo, Portugal precisa extinguir a letra c muda em palavras como ação e exato (grafada exacto pelos portugueses). Mas o uso da letra c muda continua facultativo em palavras como setor (sector).

"Mais do que sonora, a letra c diferencia algumas palavras. Fato significa terno para os portugueses. Por isso, eles manterão a grafia facto quando se referirem a algo que aconteceu", explica Dallari.

Apesar das divergências lingüísticas, as vantagens diplomáticas são defendidas pelo governo brasileiro e pela Academia Brasileira de Letras (ABL), que vêem com bons olhos a implementação das reformas em 2009. Basta saber se a equipe de Luiz Inácio da Silva conseguirá preparar o país para a nova versão da língua portuguesa, que foi deixada na gaveta dos Ministérios da Educação de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.

Segundo Alice Saboia, lingüista especialista em ortografia portuguesa e professora de pós-graduação em lingüística da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a demora para a adoção deve-se ao atraso na homologação do acordo por parte dos países africanos. "Esses países têm problemas muito sérios para resolver e o acordo não ganha importância nesse ambiente", justifica.

Além disso, ainda falta definição em alguns países sobre a manutenção da língua portuguesa como idioma oficial. "Moçambique dá sinais claros de que adotará a língua inglesa e utiliza até mesmo livros didáticos nesse idioma em suas escolas", comenta.

Meio editorial

Atualmente, o mercado comum português é estimado pela CPLP em 220 ou 230 milhões de pessoas, somando as populações dos países que integram a comunidade. Mas o número de falantes de língua portuguesa é divergente entre os especialistas.

Dallari, da PUC, esclarece que apenas as populações do Brasil (186,7 milhões) e de Portugal (10,7 milhões) podem ser consideradas na totalidade. "Nos demais países, podemos adotar uma média de 10% de falantes de língua portuguesa, o que resultaria em um mercado externo de cerca de 3,5 milhões de pessoas", calcula.

Por causa da concentração e da relação entre os países lusófonos, Xavier admite que no Brasil e, até mesmo, em Portugal muitas pessoas não vêem o acordo com simpatia. É o caso de Armando Antongini, diretor-executivo da Câmara Brasileira do Livro (CBL), que critica a reforma e alega que a homologação do acordo pelo Brasil não passou de um arroubo diplomático. Não houve, na opinião dele, nenhuma discussão sobre o impacto no mercado editorial.

"Gostaria de entender: por que o Brasil, que é o maior país de língua portuguesa, tem de aproximar sua ortografia de Portugal?", questiona, lembrando que as mudanças abrirão um enorme mercado para os livreiros portugueses. "O contrário não é verdadeiro, uma vez que os livros impressos no Brasil não são bem-aceitos no mercado português", alfineta.

Já o professor Evanildo Bechara, membro da ABL, acusa os livreiros portugueses de praticarem lobby para retardar a reforma. De acordo com ele, há grande preocupação em relação aos estoques atuais, que seriam rejeitados pelos consumidores por não estar na nova ortografia: "Os livreiros acabaram de publicar grandes versões, uma reforma agora seria um desastre para os negócios."

Para ele, a influência dos livreiros prejudica a unificação da ortografia, porque ela está intimamente ligada à língua escrita. "Essa é uma visão limitada. É preciso analisar a questão do ponto de vista da oportunidade. O que significa a abertura desse mercado?", pergunta. Além disso, Bechara destaca que as diferentes ortografias aumentam os custos das edições por exigir traduções na mesma língua.

Livros didáticos

Do ponto de vista da Câmara Brasileira do Livro, é preciso proteger o mercado nacional, já que não há uma boa relação comercial entre Brasil e Portugal no mercado editorial. De acordo com a CBL, o Brasil produziu, em 2005, 41,5 mil títulos e vendeu mais de 270,3 milhões de exemplares, totalizando um faturamento de R$ 2,6 bilhões.

Uma pesquisa realizada pela entidade aponta que, em 2000, 53,3 milhões de brasileiros leram ou consultaram algum livro. No mesmo ano, apenas 20% dos entrevistados declararam ter comprado em média 5,92 livros não didáticos. "O potencial é muito grande."

Focado no mercado interno, o setor livreiro nem sequer mapeou a receita que pode ser gerada pela entrada dos países africanos no acordo ortográfico. "Não acreditamos em bons negócios nessa região no momento", destaca Antongini.

Na ponta do livro didático, também é o mercado brasileiro que garante o faturamento. "Ainda não realizamos nenhum tipo de estudo sobre o mercado externo para livros didáticos brasileiros", confirma Roberta Martins, editora de livros de línguas da Scipione.

Nesse segmento, as atenções estão voltadas para o número de brasileiros em idade escolar - um mercado cativo de fácil mapeamento. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2007 o grupo formado por brasileiros em idade escolar (de 5 a 14 anos) será de 33,9 milhões.

Por isso, as editoras de livros didáticos não questionam ou criticam o acordo, apenas esperam as decisões governamentais para iniciar as alterações necessárias. "As maiores adaptações ocorrerão nas gramáticas e nos dicionários. O trabalho será hercúleo e teremos dois anos para atender a todas as modificações", explica Roberta.

Registrar e ensinar

Mesmo com a diversidade de opiniões, Walmírio Eronides de Macedo, membro da Academia Brasileira de Filologia, acredita que o acordo entrará em vigor em breve. Segundo ele, as regras estão em fase final de aprovação e os brasileiros reagirão bem a elas, como foi o caso de outras reformas ortográficas, ocorridas em 1943 e em 1971.

"O acordo respeita a pronúncia e as características culturais de cada país. Por isso, deve ser assimilado em pouco tempo", declara, lembrando que os filólogos ainda não fizeram nenhuma medição exata no impacto das mudanças nos dicionários. "São necessárias a homologação e a contribuição de todos os países para a realização desse trabalho."

Xavier observa que, para realizar as alterações necessárias, os editores contam com recursos eletrônicos que ajudarão muito na revisão das obras. "Além disso, há um período de transição. O livro é um bem de consumo durável e conviveremos com as duas grafias. O importante é registrar e ensinar as diferenças."

Essa reciclagem é exatamente o que preocupa Alice, da UFMT. Para ela, o impacto da reforma só poderá ser medido daqui a uma ou duas décadas e a forma como os professores serão treinados é que garantirá o sucesso. "Quando cheguei a Mato Grosso para dar aulas em 1982, fiquei surpresa com o fato de os alunos do primeiro ano do curso de Letras não acentuarem palavras como você", lembra.

"Quando questionei sobre isso, eles afirmaram que todos os acentos haviam caído com uma reforma". Essa referência é da reforma ortográfica de 1971, que retirou o acento circunflexo, utilizado como diferencial de pronúncia, de palavras como doce (que se grafava dôce) e gelo (gêlo).

Respeito mútuo

Para testar as normas do novo acordo, Alice realizou em 1992 uma pesquisa com alunos de primeiro e segundo graus. "Verifiquei que os falantes de língua portuguesa têm dificuldades com a definição de vocábulos desconhecidos. Nesse ponto, a perda do acento dificulta muito a pronúncia", comenta.

Como exemplo ela cita a extinção de acento em palavras como idéia e geléia. "Os alunos tiveram dificuldades em ler palavras sem a distinção gráfica do acento", conta.

Enquanto os falantes de língua portuguesa se ressentem das mudanças ocorridas de tempos em tempos, Alice alerta que os acordos ortográficos precisam ser respeitados em todos os países que o homologam. Como exemplo, ela cita a falta de concordância entre Brasil e Portugal em acordos anteriores.

"Em 1943, os dois países definiram uma reforma. O Brasil implementou, mas Portugal adotou outras regras em 1945. Temos de tomar cuidado para que o acordo assinado em 1990 não caia na sina de ser mais um documento assinado para não ser cumprido."

Valor Econômico

Nenhum comentário: